Reflexão do dia:

Reflexão da semana

"Ser de Candomblé não se limita ao fato de ter uma religião, é, sobretudo, um modo de vida".
Pai Lucas de Odé

sexta-feira, 10 de junho de 2016

À sua imagem e semelhança: a relação com Deus no Candomblé

Por Pai Lucas de Odé*

Dia desses fui surpreendido com uma das perguntas mais curiosas sobre o Candomblé. Vira e mexe alguém lança uma dúvida sobre rito ou concepção e, dentro daquilo que é permitido, sempre busco esclarecer e assim, como um trabalho de formiguinha mesmo, disseminar essa crença tão vasta que é a religião dos Orixás.

Meu interlocutor questionou-me se poderia rezar sozinho caso viesse a se iniciar no Candomblé. À priori pensei não ter compreendido a pergunta. Imaginei se ele se questionava sobre praticar algum rito por conta própria, ou ajudar de pronto a outras pessoas.

Interpelei e para minha surpresa era simplesmente aquilo. Em outra ocasião, segundo ele me contou, outra pessoa havia dito que no Candomblé jamais um iniciado poderia se relacionar com Deus sozinho. Para quem é da religião, este simples relato permite concluir: erro de expressão e de compreensão.

Falemos então da relação com Deus no Candomblé.

De acordo com a concepção religiosa do Candomblé, o rito iniciático tem como base a vinculação direta do ser humano com o seu Deus, seu Orixá. Tenho minha própria leitura dessa prática. Na MINHA visão, todo ser humano nasce com seu elo com o sagrado. Este ícone está inerte, adormecido e é ativado durante a iniciação, quando junto a ele é depositada aquela essência buscada na natureza.

Digo – por conta própria – que há um “gene” pré-colocado dentro de cada um, independente do rito, porque esta essência é revelada antes da iniciação, por meio do oráculo (jogo de búzios). E digo que é inerte pelo simples fato de não ter sido completada por aquilo que vem com a iniciação, funcionando como um “ativador”.

Ademais, tendo em vista a junção dessas essências é que a mágica acontece. Passamos a ser recipientes, portadores dessa força, tornamo-nos a extensão e a perpetuação de algo muito maior que nós. Tornamo-nos templo, objeto de culto e a materialização da própria energia cultuada.

Dito isso, quem neste mundo poderia cercear tal relação? É fato indiscutível que o tratamento e lapidação desse novo indivíduo necessita de um sacerdote, mas a devoção, a relação com Deus propriamente dita jamais necessitará de intermediários. Ao contrário, precisa e é gradativamente fortalecida e preservada pelo cultivo cotidiano, pelo modo de vida que se leva.

A palavra Orixá é de etimologia obscura. Entre as possibilidades, a mais simplista designa Ori – Alto, Cabeça; Xá – força. Portanto, “força do alto” ou “força da cabeça” (em referência à individualidade).

Uma segunda vertente apresenta-se com base na mitologia: Olodumare designou Orixá para vir ao mundo com Orumilá. Passado algum tempo, a arqui-divindade quis possuir um escravo. Dirigiu-se ao mercado de escravos em Emure e comprou um, de nome Atowoda, aquele que alguém traz sobre a própria cabeça. Prestativo e eficiente, trazia muita satisfação ao seu senhor. No terceiro dia de convivência Atowoda pediu a Orixá que lhe cedesse uma porção de terra para cultivo próprio. Teve seu pedido atendido e tornou-se proprietário de terras na encosta da montanha que ficava próxima à casa de Orixá. Em apenas dois dias de trabalho limpou o mato, construiu uma cabana e cultivou uma fazenda, deixando seu amo muito bem impressionado. Mas o coração de Atowoda não era bondoso e nele germinou o desejo de destruir o amo. Procurando a melhor maneira para realizar seu intento, maquinou um plano: havia na fazenda grandes pedras e uma delas poderia, em momento oportuno, ser deslocada do alto da montanha, de modo a rolar morro abaixo e cair sobre Orixá. Escolhida a pedra adequada, preparou-a para que pudesse ser facilmente deslocada. Uma ou duas manhãs depois, Orixá encaminhou-se para a fazenda. Atowoda o espreitava sem esforço, pois seu senhor vestia roupas brancas, destacando-se, nítido, na paisagem verde. No momento oportuno, Atowoda movimentou a pedra e a arqui-divindade, entre surpreso e aterrorizado, não teve como escapar e sucumbiu sob o peso da pedra, partindo-se em muitos pedaços, que se espalharam por toda parte.  Orumilá tomou conhecimento do ocorrido e, servindo-se de certas práticas ritualísticas recolheu os pedaços de Orixá numa cabaça: Ohun-ti-a-ri-sa - o que foi encontrado e reagrupado. Alguns pedaços foram levados a Iranje, lugar de origem da arqui-divindade e outros foram distribuídos por todas as partes do mundo.

A palavra Orixá, a partir daí, seria contração de Ohun-ti-a-ri-sa e esse teria sido o início do culto em todo o mundo. Este mito sugere que originalmente Orixá era uma unidade da qual decorreram todas as divindades. Sugere também que o Uno manifesta-se no múltiplo e que aquilo que é dividido será um dia reagrupado.

Por fim, para elucidar de vez a questão, outra interpretação apresenta a palavra Orixá como corruptela da palavra “orise”, contração de “Ibiti-ori-ti-se”, ou seja, origem (ou fonte) dos ori, designação do Ser Supremo. Esta interpretação enfatiza a íntima participação das divindades na obra de Deus na terra.

Seja como for, qualquer que seja a interpretação escolhida, faça preces ao seu Orixá, cultive-o em você. Creio em particular que Deus não poderia ser outra coisa que não algo tão grande que precisou dividir-se para comportar-se no mundo.

Axé!


quinta-feira, 12 de maio de 2016

O Jogo de Búzios e as orientações para o cotidiano

Por Pai Lucas de Odé*

Todo ser humano um dia já se perguntou sobre seu próprio destino. Ainda que consulta-lo não seja parte dos dogmas das religiões convencionais, no Candomblé o oráculo (Jogo de Búzios) é a materialização de um Deus que conhece o destino de todas as pessoas e fornece orientações acerca da melhor maneira de trilhá-lo. Trata-se de Orunmilá.

É importante salientar que consultar o destino não significa revelar os números da Mega-Sena, nem tampouco prever a data de morte de alguém. A consulta ao oráculo necessita ser direcionada.

O Jogo de Búzios é quase como uma consulta médica, voltada à espiritualidade. Pessoas têm problemas diversos e é nesses momentos que lembram-se de procurar ajuda. Independentemente do problema que leve alguém a procurar o oráculo, Orunmilá sempre irá revelar o que é pertinente à vida da pessoa, do que é importante dizer a ela.

No Candomblé acreditamos que uma linha muito tênue divide o mundo espiritual do material, da vida prática. É em decorrência disso que muitas dessas aflições do cotidiano podem ser sinais de que algo não vai bem espiritualmente falando. Essas explicações são o que torna o Jogo de Búzios uma importante ferramenta de orientação para o dia a dia, não somente nos momentos de dificuldade.

Todos os dias recebo dezenas de perguntas, pedidos de ajuda ou pessoas que procuram a espiritualidade para alcançar seus próprios anseios. O primeiro passo, para qualquer que seja a questão, é olhar o jogo. Nem tudo que se pretende é algo reservado para você, Mas muito do que é predestinado ainda habita o desconhecido.


É claro que muito do que acontece em nossas vidas é de ordem humana, provocado pelas nossas próprias escolhas. Isso é o tal do livre arbítrio. Todos somos livres para seguir, podemos dar voltas, mas independente do caminho, sempre haverá uma linha de chegada. O percurso pode ser conturbado ou não. É a caminhada mais branda e frutífera que Orunmilá nos mostra.

*Pai Lucas é Babalorixá do Axé Dambá Odé, localizado em São Bernardo do Campo - SP

sábado, 26 de março de 2016

Páscoa até existe em outras religiões, mas com significados bem diversos

Liberdade religiosa têm promovido visibilidade de outros credos, que fogem da ritualística cristã
Páscoa só significa renovação no cristianismo / Divulgação

Guilherme Cavalcante/Midiamax

Em um país de tradição religiosa cristã, sobretudo católica, o feriado da Páscoa - ou Semana Santa, como prega o catolicismo - afeta a todos sem distinção, seja na fé ou no bolso. Vai muito além dos costumes ritualísticos que impregnam a rotina do brasileiro nos dias que antecedem a celebração, até a economia é afetada pela data. A procura por ovos de chocolate, peixes e frutos do mar, pão de coco e outros alimentos afins foi naturalizada, ainda mais quando a sexta-feira de Páscoa é, inclusive, feriado nacional, independente da religião professada.

Entretanto, por mais que o período faça mais sentido no contexto do cristianismo, outras religiões também celebram a data, mesmo que com diferentes significados. E embora seja certo que as rotinas pascais cristãs influenciem muito as celebrações de outros credos, cada religião tem seguido para um fortalecimento dos próprios rituais. Afinal, para além da questão religiosa, há certamente elementos cultural e identitários na composição de cada credo.

O 'Keará de pessach' traz elementos simbólicos do judaísmo / Divulgação
O 'Keará de pessach' traz elementos simbólicos do judaísmo / DivulgaçãoA liberdade religiosa, a propósito, promove visibilidade da cultura de outros credos, a exemplo do judaísmo, para a qual a páscoa tem significado bastante diferente. Conhecida como pessach, a 'páscoa judaica' tem significado diverso das religiões cristãs e marca a 'festa da libertação', ou seja, a comemoração de quando hebreus foram libertados do Egito por Moisés, após atravessaram o deserto e encontrarem a terra prometida, atual Israel.

"O que a gente faz no pessach é justamente isso, celebrar essa vitória dos judeus guiados por Deus, através de Moisés. Durante sete dias, a gente fica sem comer nenhum alimento fermentado. O que a gente come é o matzá, um pão tradicional sem fermento. Nessa época, nós fazemos muitas rezas e reflexões. Tudo tem uma simbologia, representa algo do passado do nosso povo", conta a gastróloga Daniela Feher.

Segundo ela, essas simbologias são condensadas principalmente na 'keará de pessach', um prato onde se põe cada componente simbólico do pessach, durante a seder (o jantar cerimonia no qual culmina o pessach). "Cada elemento tem um significado e nos ajuda e remeter à cultura judaica e à história do nosso povo, os sacrifícios de Deus para conosco", afirma.

Rumos diferentes


Religiões de matriz africana distanciam-se dos rituais católicos de outrora / Divulgação
Historicamente, para resistirem, estes credos precisaram recorrer ao sincretismo com o catolicismo, um fenômeno de ressignificação das entidades para um contexto cristão, que marcou fortemente os rituais do candomblé. "As casas tradicionais têm uma ligação sincrética muito forte. A maioria até fecha e suspende todas as atividades durante a quaresma. Assim, a sexta-feira Santa, pra nós, é uma data de resignação perante Oxalá. Vestimos branco, resguardamo-nos em casa. Não comemos carnes e nem frango, somente peixe. Não saímos, não festejamos. A páscoa, por outro lado, marca essa reabertura, o que não deixa de ser um renascimento. Nós nos recolhemos na quinta-feira nos terreiros.

Dormimos lá, acordamos na sexta em jejum pela manhã para fazer ritos de proteção, acender velas e realizar nossas preces", relata o Babalorixá Lucas de Odé, 28, dirigente do Axé Dambá Odé, terreiro de candomblé em São Bernardo do Campo - SP.

Um fenômeno diferente tem sido observado na umbanda, uma religião brasileira, porém, oriunda do catolicismo, espiritismo, cultos ameríndios e do africanismo. Por muitas décadas, a aproximação com a páscoa católica no mesmo período, mas a situação mudou. "Antigamente as pessoas não tinha liberdade de ser umbandistas, devido ao domínio católico. Por isso as pessoas antigas eram umbandistas, mas carregavam muitas tradições daquela religião. Como as coisas evoluíram e houve mais liberdade religiosa nas últimas décadas, a umbanda fortaleceu-se e, atualmente, não considera mais o calendário católico", explica Elson Borges dos Santos, diretor espiritual da Tenda de Umbanda Pai Joaquim de Angola.

Segundo ele, a maioria dos umbandistas já não seguem os rituais antigos, que muitas vezes até copiavam a igreja católica, como abstinência na sexta-feira Santa e rituais de lava-pés.. "O que a gente se vale desse período é que devido ao feriado, a maioria dos terreiros acaba não trabalhando, mas por questões de médiuns que viajam, a corrente fica pequena... Agora, a questão de renovação na páscoa, que a igreja católica prega neste período, a gente prega o tempo todo. Todos os dias, para nós, têm o sentimento de páscoa.

Por fim, há religiões como o islamismo, que já nem sequer veem na páscoa algum significado especial, como explica Omar Ibrahim, coordenador do blog 'A Nova Cruzada', sobre cultura e religião muçulmana. "Para nós, muçulmanos, esta semana não traz qualquer significado espiritual especial, pois não cremos na morte de Cristo e por consequência, não cremos em Sua ressurreição, uma vez que só ressuscita, ou volta a vida aquele que morreu", conclui.

*Publicado originalmente no site Midiamax.com.brhttp://admin.midiamax.com.br/midiamais/pascoa-ate-existe-outras-religioes-significados-bem-diversos-294645

segunda-feira, 14 de março de 2016

O dinheiro no Candomblé: Enquanto uns vendem ilusões outros negociam a fé

Por Pai Lucas de Odé*

A história de diferentes pessoas ao chegarem no Axé Dambá Odé me levaram a escrever este texto. Quero falar sobre o dinheiro e as relações entorno dele no meio religioso, mas especificamente no Candomblé.

O “vil metal” não é chamado assim por acaso. Quando o homem descobriu o metal, logo passou a utilizá-lo para fabricar seus utensílios e armas anteriormente feitos em pedra. Mitologicamente, essa é uma das atribuições que fez de Ogun – o orixá da forja – um dos mais revolucionários entre os Orixás.

Surgiram, no século VII a.C., as primeiras moedas com características semelhantes às que conhecemos hoje. Pequenas peças de metal com peso e valor definidos e com a impressão do cunho oficial, atestado de que quem as emitiu e garante o seu valor.

O mundo antes do dinheiro funcionava por meio da cooperação entre as pessoas. O chamado escambo.  Simples trocas de mercadoria por mercadoria, sem equivalência de valor, de acordo com as necessidades fundamentais dos membros de uma comunidade. É claro que o mundo não podia continuar assim. Algumas mercadorias tinham mais utilidade que outras, logo eram mais procuradas e sobressaíram em valor, como pressupõe a lei da oferta e da procura.

O sal foi uma das moedas-mercadoria mais significativas para as civilizações, tanto que referimo-nos até hoje aos nossos salários. Era difícil de conseguir e muito utilizado na conservação de alimentos. No Brasil, entre outras mercadorias, circularam o cauri (búzios) – trazido pelo escravo africano –, o pau-brasil, o açúcar, o cacau, o tabaco e o pano, trocado no Maranhão, no século XVII.

E pra que toda esta introdução? Simples: pra comprovar que historicamente o dinheiro afastou as pessoas umas das outras, as fez querer levar vantagem umas sobre as outras e, por fim, porém não menos importante, como diz meu pai: que “o dinheiro afasta as pessoas de Deus”.

Se trouxermos esse aparato histórico para o seio dos nossos terreiros de Candomblé, uma série de pensamentos me vêm à mente. A fé pode ser suprida pelo dinheiro? A quantidade suprime a qualidade? O luxo representa o melhor nesse processo de religação que buscamos? Pra todas essas perguntas, uma única resposta: Não!

O Candomblé é uma religião baseada na obtenção e transmutação do Axé, força vital sagrada, sem forma, sem raciocínio, que buscamos por meio de ritos e conservamos por meio de padrões comportamentais. Nesse contexto, o dinheiro pode arcar com a maior das oferendas, mas não pode substituir o processo de preparo delas todas e o Axé, creiam, não está no fim, mas no meio deste produto. Sendo assim, pagar outros para fazerem por você ou querer compensar sua falta com recursos financeiros não te traz Axé. Não adianta se iludir. Deus gosta de zelo, de culto... é a devoção que nos liga a Ele. É o suor, a noite de sono perdida, o desprendimento da energia do corpo em forma de trabalho pelo sagrado.

Ao meu ver, a maior das lições precisa ser dada aos próprios sacerdotes do Candomblé. Não foi só o branco de classe média que estragou o idealismo religioso do povo mais simples. A corrupção vem do maior para o menor e, neste cenário, em se tratando sobretudo de uma religião hierárquica, quem mais deveria ter critérios se corrompeu. Concessões, facilidades, regalias, meias verdades, tudo visando apenas o dinheiro. “Ganha-se dos errados para bancar o certo”, dizem alguns. Ledo engano. Se assim um Babalorixá ou Iyalorixá o fez, passou ele ou ela a ser o errado.

É fato que num terreiro de Candomblé existem despesas e essas não são pequenas. Precisamos como todo mundo precisa do dinheiro, uma vez que a lógica do capital não nos permite retroagir. Contudo, vender ilusões, trocar valores morais por valores em reais é o pior dos pecados.

Como proceder? A verdade sempre é o melhor caminho. No Dambá Odé, a minha concepção de religioso me obriga a ser o mesmo pai para os pobres e para os ricos. A bênção não pode ser comprada. Ela tem que ser conquistada.

Acreditar está além do que se pode ver. Quantas histórias já ouvi... quantas vezes consegui muito com pouco, dividi e divido o que ganho na minha vida particular com o que creio ser sagrado. No momento em que abro as portas da minha casa para receber pessoas no que chamo de templo, não posso permitir que alguém saia sem uma ajuda. Creiam, poucas vezes vi conseguirem muito com muito. Um prato vazio pode ser a mais especial das oferendas para quem só tem a sí mesmo para ofertar.

*Pai Lucas de Odé é Babalorixá do Axé Dambá Odé, localizado em São Bernardo do Campo - SP.

A fé e os caminhos para Deus

Todos os caminhos levam a Deus, dizem. Então o que faria do Candomblé diferente nessa saga? Será que sabemos conversar com Ele?

O culto a Deus – chamado pelos Iorubas de Olodumarê - está nas questões mais simples e ao mesmo tempo cruciais do mundo, diretamente ligado aos elementos responsáveis pela vida humana. Cada um desses elementos é domínio de um Orixá, que, personificados seriam guardiões/gestores disso tudo, ou ainda a memória e o saber daqueles que nos precederam na relação com o considerado divino. É assim com o vento, a água doce, a água salgada, a terra, o caminho, a floresta, entre outros.

Mediante essa compreensão, cada ser humano possui uma ligação com pelo menos uma dessas várias parcelas da natureza, que reunidas correspondem a Deus. Cultuamos e celebramos então a vida, o que contraria frontalmente a chamada teologia da prosperidade.

Deus não nos ajudará a pagar contas. Deus não sabe o que é uma fatura. Deus não nos ajudará a financiar um carro zero, Ele não sabe o que é um carro, nem tampouco uma prestação. E ainda que soubesse, será que isso é mesmo algo nobre, que mereça ser objeto da nossa ligação com Ele?

Deus, em suas diferentes parcelas, pode compreender uma súplica pela chuva, para fertilizar a terra, para fazer brotar o alimento que sustentará o ser humano. Deus pode atender uma prece pela perfeita formação de uma criança no ventre da mãe, uma vez que a vida também é sua criação. Deus pode interceder pelo doente, pode dar discernimento ao aflito, pode conceder a bênção de uma colheita farta, de uma pesca frutífera, de uma caça gorda.

Acontece que a vida humana tornou-se condicionada a supérfluos modernos que Deus desconhece. É fato que é impossível retroagir, mas ainda podemos preservar valores verdadeiros e rogar a Ele numa linguagem que Ele possa compreender. Tenho a impressão que Deus está carente de causas nobres.

Alguém disse: “Quem não sabe rezar xinga Deus”

Pai Lucas de Odé
Axé Dambá Odé – São Bernardo do Campo – SP


segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

INCONSTITUCIONAL: Manifesto sobre a proibição da imolação de animais em cultos religiosos



Pai Lucas de Odé

Vereadores do município de Valinhos, interior de São Paulo, aprovaram por unanimidade, no último dia dois de fevereiro um projeto de lei que proíbe o que chamaram de  “sacrifício e mutilação de animais em rituais religiosos”. A propositura foi do vereador César Rocha (Rede).

Vereador César Rocha (Rede), autor do projeto inconstitucional
Na justificativa do projeto, o vereador alega que a Constituição Federal não permite a adoção de práticas
que submetem os animais à crueldade. Ele também destaca lei federal que caracteriza como crime a prática de maus tratos e de abusos contra os animais.

O que surpreende é que tal projeto tenha passado pela Comissão de Justiça e Redação daquela Casa de Leis, presidida pelo vereador Paulo Montero (PSDB), mesmo com um parecer contrário. A Comissão tem como membros os parlamentares Giba (PDT), Israel Scupenaro (PMDB), Kiko Beloni (PSDB) e Veiga (DEM).

Vereador Paulo Montero (PSDB), presidente da Comissão de Justiça,
que não apontou a inconstitucionalidade do projeto
Não precisa ser jurista para entender que nenhum dispositivo legal pode disciplinar uma prática religiosa, o que torna qualquer propositura nesse sentido inconstitucional. O autor do projeto se antecipou aos questionamentos sobre a constitucionalidade da matéria:

“É garantia constitucional a liberdade religiosa, de culto e de fé, desde que esta liberdade não restrinja a liberdade de outrem, ou seja, que não configure ato volitivo, premeditado e ritualizado de privar um ser vivo de seu bem mais essencial, que é a vida” 

César disse ainda que o projeto deve ser copiado por outros municípios. Ora! O próprio vereador diz que a Constituição assegura a liberdade religiosa e que essa liberdade não pode restringir a liberdade de outrem, mas o Projeto de Lei restringe diretamente a prática religiosa das religiões de matriz africana, que têm como conceito básico as imolações e comunhão no âmbito das comunidades de terreiro.

A Constituição não menciona e nem compete a Ela mencionar o que compreende a liberdade religiosa de diferentes segmentos religiosos. Contudo, se um dispositivo religioso me impede de praticar a minha religião, até que ponto a norma constitucional está sendo respeitada? Essa deveria ser a preocupação dos nobres pares, especialmente da Comissão de Justiça daquela Casa.

Vereador Israel Scupenaro (PMDB), a palmatória do mundo
O vereador Israel Scupenaro (PMDB) também foi favorável à proposta. “Não tem porque utilizar animais
nesses rituais”, disse o parlamentar. Não tem porque? O nobre legislador seria também um conhecedor de uma tradição milenar a ponto de dizer o que compete ou não a ela?

O vereador Rodrigo Fagnani, o “Popó” (PSDB) ressaltou que a liberdade de culto não estava em debate. “Nós não estamos debatendo a religião, mas sim o sentido da vida. Valinhos tem de dar o exemplo, sair na frente”, discursou.

Vereador Rodrigo Fagnani, o “Popó” (PSDB),
o exemplo de desrespeito à liberdade de culto
De fato, não se trata de debater religião, motivo suficiente pelo qual não compete a qualquer representante político restringir o direito de livre crença e prática religiosa. Quer dizer que podemos crer, mas não cultuar? A Constituição é clara no que se refere à liberdade de crença e culto e, nesse contexto, a minha liberdade de culto está comprometida pela nova Lei. Quisera eu vereador que Valinhos desse o exemplo de respeito à fé alheia.

Caso o projeto vire lei, quem desrespeitar a legislação estará sujeito à multa no valor de 20 Unidades Fiscais do Município, o que equivale atualmente a R$ 3.022,60. A fiscalização será de responsabilidade da Prefeitura.

Prefeito de Valinhos, Clayton Machado (PSDB)
pode sancionar ou vetar  a proposta
A proposta segue agora para sanção ou veto do prefeito Clayton Machado (PSDB), que esperamos ser
mais sensato do que os vereadores do município. O alerta para a sociedade é que se esse lei for sancionada, teremos um precedente jurídico que cerceará a liberdade de culto em outros municípios. Já aconteceu em Embu Guaçu e pode se espalhar pelo Brasil inteiro. No caso de Valinhos, participaram da defesa do projeto ativistas de Campinas, Vinhedo, Sāo Roque e Sāo Paulo.

Há alguns dias conversei com o advogado Melillo, de Brasília, que também é Ogan no Candomblé. Pensei que talvez fosse o caso de ingressar na Justiça com uma ação coletiva pela inconstitucionalidade de qualquer matéria que discipline uma prática religiosa, mas ele me explicou que "uma ação como está tem que se referir a caso concreto e não geral. Alem disso, os parlamentos estaduais e municipais têm o poder de tentar legislar sobre qualquer assunto, mesmo que seja uma tolice como esta ou a revogarão da lei  da gravidade".

Então o que podemos fazer? De acordo com o Ogan Melillo, "a Constituição da República garante a liberdade religiosa como direito e garantia fundamental, positivando o princípio em seu Art. 5º, inciso VI. O texto constitucional também protege a manifestação da cultura afro-brasileira, indígena e popular no Art. 215 §1º. Por outro lado, a Carta Magna protege a fauna e a flora vedando às práticas que submetam os animais a crueldade (art. 225 §1,VII). Estamos diante de um caso de colisão de princípios, deve-se então desenvolver o tema, ponderando os valores colidentes, para saber qual dos princípios devera preponderar", explicou.

O que isso significa é que a própria Constituição se confronta. A política de defesa dos direitos animais fundamenta-se no art. 225, § 1º, VII, da Constituição Federal, que garante a proteção à fauna, sendo vedadas quaisquer práticas que submetam os animais a crueldade. E cita ainda a Lei Federal de Crimes Ambientais (Lei nº 9605/1998) em seu artigo 32 prevê que a prática de maus tratos, abusos, como ferir ou mutilar animais configura prática de crime. Fosse levado o conceito ao pé da letra, seríamos uma nação vegana.

Nesse caso, ainda de acordo com o Ogan e advogado, "diante do fato de  que há garantia constitucional às práticas religiosas, a delicadeza, já enfrentada pelos tribunais, é definir se há ou não crueldade nos rituais de nossas tradições. Há várias outras questões relativas à inconstitucionalidade de legislações assim. Os estados e os municípios não poderem legislar sobre este tema é o principal. Depois, em alguns casos há vício de iniciativa...".

Há poucos dias falamos aqui no Blog de uma outra proposta absurda que visa isentar líderes religiosos (leia-se pastores) dos crimes de injúria e difamação. Estão tentando promover um cerceamento jurídico da nossa religião, precisamos reagir.

Somos uma sociedade de contrassensos. Será proibido o consumo de peixes, perus, porcos, tender, chester abatidos nas dependências das instituições religiosas, nas ceias de Natal e Semana Santa? E os produtos derivados do sacrifício animal como patês, hambúrgueres, ovos e derivados de leite? E a utilização  de animais em testes para produtos diversos? Toda sociedade será obrigada a aderir ao vegetarianismo? A morte de animais em frigoríficos respeita a vida? Um boi esquartejado não é mutilação?

Ogan Melillo dividiu comigo um caso de jurisprudência do Rio Grande do Sul, onde o debate foi a fundo. "Vencemos nos tribunais inferiores mas há ainda pendência de julgamento no Superior Tribunal Federal", contou.


CONSTITUCIONAL. AÇÃO DIRETA. SACRIFÍCIO RITUAL DE ANIMAIS.CONSTITUCIONALIDADE.1. Não é inconstitucional a Lei 12.131/04-RS, que introduziu parágrafo único ao art. 2.° da Lei 11.915/03-RS, explicitando que não infringe ao “Código Estadual de Proteção aos Animais” o sacrifício ritual em cultos e liturgias das religiões de matriz africana, desde que sem excessos ou crueldade. Na verdade, não há norma que proíba a morte de animais, e, de toda sorte, no caso a liberdade de culto permitiria a prática.2. AÇÃO JULGADA IMPROCEDENTE. VOTOS VENCIDOS

O Candomblé não mata animais. Imolamos para comer, para alimentar a nossa família com algo que consideramos sagrado. Nossos animais não são maltratados, mutilados. São tratados com respeito pois representam a nossa hóstia, a comunhão com os nossos Deuses. Proíbam os católicos de comungarem. Eles acreditam que é o corpo de Cristo. É canibalismo.

O problema na verdade é um só: Somos uma religião marginal, de pretos, pobres, descendentes de escravos, sem vez, mas ainda temos voz!

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

Iyemanjá receberá homenagens no próximo dia 14, em São Vicente

Foto: Ricardo Moraes
No próximo dia 14 é a vez da comunidade religiosa da baixada santista realizar homenagens à Iyemanjá, dessa vez em São Vicente. A Festa de Iemanjá 2016 será promovida pela Associação Religiosa Asé Oxumare e Associação Religiosa do Candomblé do Estado de São Paulo (Arcesp), com apoio da Prefeitura, por meio da Secretaria da Cultura (Secult).

De acordo com a programação, às 13 horas, terá início a tradicional lavagem da escadaria da Igreja São Vicente Mártir (Praça João Pessoa, s/nº - Centro). Em seguida, às 14h, ato religioso no Parque Vila de São Vicente (na mesma praça). Às 15h, haverá procissão no trecho entre a Praça Tom Jobim e o Píer do Gonzaguinha. No encerramento, entrega dos presentes à Rainha do Mar.

Cultuada principalmente pelo candomblé e exaltada na umbanda, o nome de Iemanjá deriva da expressão “Yèyé (ou iyá) omo ejá”, do idioma yorubá, que significa “mãe cujos filhos são como peixes”. Iyemanjá é considerada mãe de todos os orixás e Rainha do Mar, protetora dos navegantes e das famílias. Uma antiga lenda yorubá conta que as águas do oceano brotaram de seus seios fartos, uma analogia à maternidade.

Com informações do jornal A Tribuna, da baixada santista

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

Rezando Alto, religiosos lembram a Quebra do Xangô alagoano em 1912

Foto: Reprodução/Ministério da Cultura
Há 104 anos, mais precisamente no dia 2 de fevereiro de 1912, ocorria uma das maiores atrocidades já
cometidas contra os partícipes de religiões de matriz africana no país. O Quebra de Xangô, ou Quebra de 1912, ocorreu na cidade de Maceió e foi motivada por uma disputa política da época.

Euclides Malta, na época há 12 anos como governador de Alagoas, era muito próximo às casas de axé, apesar de católico. A oposição, à época, liderada por Clodoaldo da Fonseca e Fernandes Lima, afirmava que Euclides se mantinha no poder por causa de “feitiçarias” dos xangôs alagoanos.

As ações para destruir as casas de axé foram extremamente brutais. Segundo o livro “Kulé Kulé - Religiões Afro-Brasileiras”, organizado por Bruno César Cavalcanti, Clara Suassuna Fernandes, Rachel Rocha de Almeida Barros, os terreiros foram invadidos, objetos sagrados foram queimados em praça pública e pais e mães de santo foram espancados publicamente.

Todo o movimento contra as religiões de matriz africana teve o apoio da imprensa oposicionista, segundo historiadores, notadamente o extinto Jornal de Alagoas. O impresso utilizava-se de termos chulos e, na série de reportagens intituladas “Bruxarias”, publicada nos dias subsequentes ao Quebra de 1912, a Mãe de Santo Tia Marcelina era tratada como a “feiticeira” preferida de Euclides Malta.

Naquele dia, babalorixás e yalorixás tiveram seus terreiros invadidos por uma milícia armada denominada Liga dos Republicanos Combatentes, seguida por uma multidão enfurecida, e assistiram à retirada, à força, dos templos de seus paramentos e objetos de culto sagrados, que foram expostos e queimados em praça pública, numa demonstração de preconceito e intolerância religiosa para com as manifestações culturais de matriz africana.

Tia Marcelina, de acordo com relatos de historiadores, resistiu aos ataques e foi golpeada com um sabre na cabeça, vindo a falecer meses depois. Toda essa violência mudou a forma de cultuar os Orixás, surgindo o Xangô Rezado Baixo. A agressão à Tia Marcelina, e aos demais terreiros, foi materializada pela Liga dos Republicanos Combatentes.

Esse evento, que intimidou o povo de santo e suas práticas nas décadas subsequentes proporcionou o surgimento de uma manifestação religiosa intimidada, denominada Xangô Rezado Baixo, uma modalidade de culto praticada em segredo, alimentada pelo medo, sem o uso de atabaques, e animada apenas por palmas.

Para lembrar o Quebra de Xangô, ocorrido em 1912, dezenas de casas de axé se reuniram na tarde de ontem, na Praça dos Martírios, Centro de Maceió. O intuito do evento, iniciativa da Universidade Estadual de Alagoas (Uneal), Fundação Municipal de Ação Cultural (FMAC) e da Rede Alagoana de Comunidades Tradicionais de Terreiro, é combater a intolerância contra as religiões de matriz africana. O nome do projeto que realiza o encontro dos grupos é Xangô Rezado Alto.

Pai Célio, da Casa de Iemanjá, destaca que o evento é um marco importante para desperta a consciência das pessoas sobre o preconceito que as religiões de matriz africana vêm sofrendo ao longo do tempo em Alagoas.

“Sempre tivemos problemas para celebrar nossos cultos. O Quebra de 1912 foi um dos marcos principais de intolerância contra nós, mas hoje ainda sofremos com isso. São desde pastores, principalmente os neopentecostais, com seus canais de televisão e policiais militares evangélicos que invadem nossas casas de axé e destroem tudo. Pelo menos essa violência nos possibilitou a criação de promotoria específica para tratar do assunto e toda a agressão que sofremos, nós denunciamos”, diz Pai Célio.

Foto: Adailson Calheiros/Tribuna Hoje
Para o líder religioso, que também é historiador, lembrar o Quebra de 1912 serve para mostrar que as religiões de matriz africana não são “oba oba” e que a tolerância religiosa é possível de ser construída no estado. Ele também destacou o pedido de desculpas feito pelo Estado, na gestão de Teotônio Vilela (PSDB), pelo ocorrido no início do século 20.

“Foi um gesto importantíssimo. O Estado reconheceu seu erro e a forma extremamente arbitrária com que destruiu dezenas de casas de axé por causa de rixa política entre o governador e a oposição da época”, comenta Pai Célio.

O pedido de desculpas ocorreu em 2012, ano do centenário do Quebra de 1912. Na ocasião, Mãe Neide, que representou as religiões de matriz africana durante a cerimônia, passou em revista às tropas da Polícia Militar de Alagoas.

O presidente da FMAC, Vinícius Palmeira, compareceu à Praça dos Martírios. Ele destacou que a data é um fato histórico importante para Alagoas e por isso merece ser sempre lembrada.

“Tiveram outros Quebras, mas esse de 1912 possui características únicas. Ele derrubou governo, teve motivação política sem o envolvimento direto das religiões afro e mostrou bem a hipocrisia alagoana. O Quebra de 1912 foi realizado como se a ação fosse um bloco de Carnaval. Os policiais iam destruindo tudo, na medida em que o bloco ia passando pelas ruas do Centro de Maceió que na época devia ter em torno de 50 casas de axé”, conta Vinícius.

Além disso, o presidente da FMAC pontua que até hoje, é negado aos negros seu lugar na História alagoana. Para ele, é preciso defender e fortalecer a cultura negra em Maceió. “Somos uma cidade racista”.

UNEAL

Quem também se fez presente ao local foi Jairo Campos, reitor da Uneal. Ele ressaltou o papel da Instituição que dirige ao se colocar ao lado das minorias em Alagoas. Segundo ele, é preciso fortalecer o debate de liberdade de credo.

“Fala-se tanto em Zumbi aqui em Alagoas, mas nega-se a negligência ao povo negro no estado. Manter o debate sobre a liberdade religiosa aberto é a melhor forma de conseguir o respeito que a cultura negra tem de ter. E a universidade tem papel importante nesse diálogo”, comenta Jairo.

Ele também destacou relação da imagem de Alagoas com a de Zumbi, e que isso dá ainda mais responsabilidade para pôr fim à intolerância religiosa no estado. “A Serra da Barriga tem um significado, que a elite branca nega”.

Participantes reforçam construção

O arquiteto Daniel Toledo e a chef de cozinha Rídina Mota são integrantes de um dos grupos que se apresentou na tarde de ontem. Membros do Coletivo Afrocaeté, eles participam desde a primeira edição do evento, realizado em 2012.

“Para nós estar aqui e lembrar a atrocidade ocorrida em 1912 e o pedido oficial de desculpas do Estado é muito importante. Reforçar a necessidade da construção da tolerância religiosa e mostrar para as pessoas a beleza de nossas celebrações também é algo que nos motiva bastante”, comenta Rídina Motta.

Já Daniel ressaltou que há apenas duas datas em que as casas de axé se reúnem em locais públicos: o dia 8 de dezembro, que celebra o Dia de Iemanjá e o 2 de fevereiro, que lembra o Quebra de 1912.

“Temos aqui casas de vários locais de Alagoas. Isso é raro e aumenta a importância desse evento. Neste ano não tivemos o cortejo pelas ruas do Centro, acho que por causa da chuva, mas mesmo assim vem muita gente nos ver aqui”, diz Daniel.

Para eles, o ideal seria que o evento fosse realizado mais cedo e durante todo o dia. Porém, eles entendem não ser possível, num dia útil, fazer a lembrança ao Quebra dessa maneira. “Realmente, seria bem melhor. Teríamos o dia todo e cada grupo poderia se apresentar com mais tempo. Mas como faríamos isso se as pessoas estão trabalhando?”, argumenta Rídina.

Com informações do jornal Tribuna Hoje

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

Projeto de Lei quer isentar pastores dos crimes de injúria e difamação

Foto: Carlos Terrana
Por Pai Lucas de Odé

Enquanto nos ocupamos dos nossos afazeres diários e buscamos o mínimo de respeito para professar nossa fé, enquanto desmistificamos as religiões de matriz africana e lutamos contra a intolerância religiosa e os discursos de ódio, um projeto de lei tramita na Câmara dos Deputados para dar imunidade aos crimes de injúria e difamação para as opiniões de líderes religiosos e de professores no exercício de suas atividades.

Obviamente que essa proposta só poderia vir de um grupo evangélico, sobretudo daqueles que disparam injúrias e difamações ao sabor de seus próprios interesses, geralmente veiculados em emissoras de televisão. O autor do texto, deputado e pastor evangélico Hidekazu Takayama (PSC-PR, isso mesmo, Partido Social Cristão), justifica a proposta com o argumento de que ministros religiosos, como padres e pastores, podem ter opiniões consideradas ofensivas ao criticar “condutas” condenadas por sua religião.

Takayama é correligionário de outro deputado bastante conhecido das minorias: Marco Feliciano

O texto, com o objetivo declarado de garantir a liberdade de expressão, é criticado por dar imunidade criminal a um grupo específico e chega num momento em que líderes religiosos são questionados na Justiça sob acusações de ofensas e incitação à violência contra homossexuais e religiões afro-brasileiras.

A proposta deve voltar a tramitar este mês, com o fim do recesso parlamentar, na comissão especial criada em novembro para dar parecer sobre o projeto.

"[O ministro religioso] segundo os valores da sua fé tem que se posicionar contra determinadas condutas que afrontam esses valores, e que podem ser considerados como ofensivas por outros que defendem posição divergente" 

Texto da justificativa ao projeto de lei, apresentado originalmente em 2005


O texto em tramitação hoje abre uma brecha para que qualquer pessoa que emitir uma manifestação de teor religioso fique imune aos crimes de injúria e difamação.

Diz o texto mais atual da proposta que não será configurada como crime de injúria ou difamação “a manifestação de crença religiosa, em qualquer modalidade, por qualquer pessoa, acerca de qualquer assunto e a opinião de professor no exercício do magistério”. A modificação foi inserida em 2013, durante tramitação na CCJ (Comissão de Constituição de Justiça).

Bancada evangélica

Juristas religiosos criticam o projeto. Para o presidente da Associação Nacional de Juristas Evangélicos (Anajure), Uziel Santana, o direito à opinião não deve ser defendido com base em alterações nas leis penais.

Santana afirma ver contradição na crítica feita por setores religiosos ao projeto de tornar crime opiniões que ofendam os homossexuais (homofobia) e a defesa do texto de Takayama.

“Então, quando os próprios evangélicos criticam o PL 122/06 da homofobia justamente por que é uma norma penal, como eu, evangélico, vou defender um projeto de natureza penal para dar uma excludente a essas duas questões [injúria e difamação] a professores e religiosos?”, questiona Santana. “Acho que legislação penal não serve para direitos humanos. Essa é uma opinião fechada da Anajure”, diz.

"Religiosos, professores, homossexuais, de direita e de esquerda devem ser cidadãos. E como cidadãos eles têm seus direitos e seus deveres"

Uziel Santana, presidente da Anajure

O presidente da Anajure, que tem acompanhado a tramitação do projeto, diz que a comissão especial foi criada originalmente para analisar o projeto do Estatuto da Liberdade Religiosa, mas por pressão da Frente Parlamentar Evangélica, foi incluído o projeto que trata dos crimes de injúria e difamação.

Dos 23 membros titulares da comissão que vai analisar o projeto, 17 fazem parte da frente evangélica, e dois da frente católica.

O presidente da comissão, Antônio Jácome (PMN-RN), afirmou que o trabalho da comissão ainda está no início e que o objetivo é “ouvir todos os lados envolvidos no assunto” e produzir um texto que “ajude no combate à intolerância religiosa”, disse, em nota enviada por sua assessoria de imprensa. Foram realizadas apenas duas das 40 sessões de prazo da comissão.

O que é injúria e difamação

O crime de difamação é a atribuição a alguém de um fato ofensivo à sua reputação. Por exemplo, dizer que alguém é desonesto ou que trai a mulher. Já a injúria está relacionada ao ato da ofensa em si, e pode ser configurada por meio de xingamentos, por exemplo. A dupla costuma estar associada ao crime de calúnia, que é quando é atribuído a alguém a prática de um crime. Por exemplo, ao dizer que um homem é ladrão. A calúnia, no entanto, não é alvo do projeto de lei em tramitação na Câmara.

O promotor de Justiça e professor de direito penal da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), Christiano Jorge Santos, afirma que a liberdade de expressão de religiosos e professores já é garantida por lei. Ele explica que só é configurado o crime quando está clara a intenção de ofender, e que a lei não pune a discussão de ideias, mesmo que contrárias a outras crenças ou comportamentos sociais.

“Qual a justificativa para se pretender excluir do rol dos crimes do artigo 140 [do Código Penal] uma ofensa no contexto religioso ou praticada por quem está no exercício de função religiosa?”, questiona Souza.

Acusações de discriminação


Líderes religiosos que se destacam por sua atuação já tiveram opiniões questionadas na Justiça sob a suspeita de discriminação. Em maio do ano passado, a TV Record, de propriedade do bispo Edir Macedo, foi condenada a exibir quatro programas de televisão como direito de resposta às religiões de origem africana por ofensas contra elas, veiculadas no programa “Mistérios” e no quadro “Sessão de Descarrego”.

Outro caso ocorreu em outubro de 2015, quando o Tribunal Regional Federal da 3º Região (TRF-3) determinou que seja retomado o processo contra o pastor Silas Malafaia por supostas declarações homofóbicas durante o programa de TV “Vitória em Cristo”.

A reportagem original é de Felipe Amorim, do UOL Notícias

terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

Nas homenagens a Iemanjá, devotos começam a se preocupar com o lixo deixado nas areias e no mar

Rprodução: Projeto Colabora
No balaio de contradições que abriga a sociedade brasileira, a baixa proporção de autodeclarados praticantes das religiões de matriz africana é vizinha do robusto rebanho de devotos de Iemanjá. A senhora das águas salgadas, dona de todas as cabeças, é das divindades mais reverenciadas do país. No Rio de Janeiro, as homenagens à beira-mar estão na origem do que hoje é uma das mais famosas festas de réveillon do planeta; em 2011, tornaram-se patrimônio cultural da cidade. Nos dias que antecedem a virada do ano, centenas de milhares de iniciados na umbanda e no candomblé e de fieis de ocasião vão às praias oferecer presentes e lançar pedidos ao orixá. Por numerosas, as oferendas fazem soar o alarme da preocupação ambiental.

Na virada de 2015, a Comlurb recolheu 368 toneladas de lixo das areias de Copacabana. Havia muitas garrafas de bebidas, mas também grande quantidade de flores, velas e vidros de perfume, típicos presentes dos devotos. Em Salvador, no dia seguinte ao 2 de fevereiro passado, quando a capital baiana festejou Iemanjá, a empresa local de limpeza urbana retirou uma tonelada de resíduos das praias do Rio Vermelho, epicentro das comemorações.

A transformação do ritual religioso em tradição cultural, não é de hoje, preocupa ambientalistas. Há dez anos, o grupo Nzinga de Capoeira Angola promove a campanha “Iemanjá protege quem protege o mar”, em Salvador. Os ativistas pedem que as oferendas sejam biodegradáveis ou de materiais orgânicos. À frente do terreiro Ilê Axé Opô Afonjá, Mãe Stella de Oxóssi prega, faz tempo, contra homenagens que agridam a natureza. “A gente não leva presente para melar a casa da pessoa”, declarou às vésperas da festa deste ano.

Em 2016, a ialorixá vai dobrar a aposta. Na semana do Natal, em artigo no jornal baiano “A Tarde”, Mãe Stella convocou filhos de santo a reverenciarem Iemanjá com canto, dança e preces. No texto “Presença, sim. Presente, não”, uma das mais importantes sacerdotisas dos cultos afros do Brasil rejeita a entrega de barcos, perfumes, espelhos, bijuterias e até mesmo flores no mar. “Quem for consciente e corajoso entenderá que os ritos podem e devem ser adaptados às transformações do planeta e da sociedade. Os ritos se fundamentam nos mitos e nestes estão guardados ensinamentos valorosos. O rito pode ser modificado, a essência dos mitos, jamais”, escreveu.

Em Salvador e Porto Alegre, o sincretismo religioso da umbanda reservou a Iemanjá o 2 de fevereiro, dia dedicado à Nossa Senhora dos Navegantes, santa católica que protege os pescadores. No Rio, a data era, na origem, o 31 de dezembro. Mas o gigantismo do réveillon levou devotos a anteciparem homenagens. Na terça-feira, 29, centenas de pessoas participaram de cortejo do Mercadão de Madureira até Copacabana. Para reverenciar a Rainha do Mar, cruzaram 30 quilômetros, passaram por 15 bairros cariocas.

O babalaô Ivanir dos Santos, ativista contra a intolerância religiosa, recomenda que presentes inorgânicos não sejam deixados na natureza: “O que Mãe Stella está propondo não é novidade no candomblé. Na Nigéria, a forma milenar de homenagear os orixás não polui. Basta uma cabaça com oferendas e milhares de pessoas cantando e dançando. A questão é como mudar a tradição sem ferir a fé”, diz. Outro ponto é conscientizar os leigos.

Em 2006, com apoio da Fundação Palmares, Aderbal Ashogun – sob a consultoria de Mãe Beata de Iemanjá, do terreiro Ile Omiojuaro, há 30 anos em Nova Iguaçu (RJ) – publicou a cartilha “Educação ambiental para religiões afro-brasileiras”. O objetivo era resgatar o saber tradicional das religiões de matriz africana. “Os mais velhos não encontravam tantos resíduos de vidro, plástico, papelão compondo as oferendas. O dito progresso do mundo capitalista deturpou nossa maneira de tratar o meio ambiente. O povo de santo acabou incorporando valores que nos afastam de nossas tradições e justificam mais preconceito contra as religiões afro-brasileiras”, diz o texto.

No rol de práticas sustentáveis sugeridas na cartilha, está o uso de recipientes biodegradáveis (folhas de bananeira e cuias, no lugar de louças, por exemplo). Há recomendação expressa para que o devoto não deixe para trás sacos plásticos e embalagens. “No mar, derrame líquidos de garrafas e frascos de perfumes; retorne com objetos como espelho, pente, sabonete, bijuterias. Cantar, tocar, dançar são opções de oferendas que não deixam lixo”, destaca outro trecho.

O historiador Luiz Antonio Simas confirma que a questão ambiental é crescentemente discutida nas comunidades de terreiro. “Vejo mudanças, sim. O próprio processo de urbanização gera redefinições na estruturação do culto. Percebo um movimento de se combater a hipertrofia ritual, reduzindo o número de coisas utilizadas em oferendas. Em vez de oferecer frascos de perfumes, por exemplo, despeja-se um pouquinho do líquido no mar e descarta-se corretamente o vidro. Estou com Mãe Stella”, sentencia. É a prova de que fé e sustentabilidade podem, sim, andar juntas.

Conteúdo reproduzido integralmente do portal do Projeto Colabora, escrito por Flávia Oliveira