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"Ser de Candomblé não se limita ao fato de ter uma religião, é, sobretudo, um modo de vida".
Pai Lucas de Odé

sexta-feira, 10 de junho de 2016

À sua imagem e semelhança: a relação com Deus no Candomblé

Por Pai Lucas de Odé*

Dia desses fui surpreendido com uma das perguntas mais curiosas sobre o Candomblé. Vira e mexe alguém lança uma dúvida sobre rito ou concepção e, dentro daquilo que é permitido, sempre busco esclarecer e assim, como um trabalho de formiguinha mesmo, disseminar essa crença tão vasta que é a religião dos Orixás.

Meu interlocutor questionou-me se poderia rezar sozinho caso viesse a se iniciar no Candomblé. À priori pensei não ter compreendido a pergunta. Imaginei se ele se questionava sobre praticar algum rito por conta própria, ou ajudar de pronto a outras pessoas.

Interpelei e para minha surpresa era simplesmente aquilo. Em outra ocasião, segundo ele me contou, outra pessoa havia dito que no Candomblé jamais um iniciado poderia se relacionar com Deus sozinho. Para quem é da religião, este simples relato permite concluir: erro de expressão e de compreensão.

Falemos então da relação com Deus no Candomblé.

De acordo com a concepção religiosa do Candomblé, o rito iniciático tem como base a vinculação direta do ser humano com o seu Deus, seu Orixá. Tenho minha própria leitura dessa prática. Na MINHA visão, todo ser humano nasce com seu elo com o sagrado. Este ícone está inerte, adormecido e é ativado durante a iniciação, quando junto a ele é depositada aquela essência buscada na natureza.

Digo – por conta própria – que há um “gene” pré-colocado dentro de cada um, independente do rito, porque esta essência é revelada antes da iniciação, por meio do oráculo (jogo de búzios). E digo que é inerte pelo simples fato de não ter sido completada por aquilo que vem com a iniciação, funcionando como um “ativador”.

Ademais, tendo em vista a junção dessas essências é que a mágica acontece. Passamos a ser recipientes, portadores dessa força, tornamo-nos a extensão e a perpetuação de algo muito maior que nós. Tornamo-nos templo, objeto de culto e a materialização da própria energia cultuada.

Dito isso, quem neste mundo poderia cercear tal relação? É fato indiscutível que o tratamento e lapidação desse novo indivíduo necessita de um sacerdote, mas a devoção, a relação com Deus propriamente dita jamais necessitará de intermediários. Ao contrário, precisa e é gradativamente fortalecida e preservada pelo cultivo cotidiano, pelo modo de vida que se leva.

A palavra Orixá é de etimologia obscura. Entre as possibilidades, a mais simplista designa Ori – Alto, Cabeça; Xá – força. Portanto, “força do alto” ou “força da cabeça” (em referência à individualidade).

Uma segunda vertente apresenta-se com base na mitologia: Olodumare designou Orixá para vir ao mundo com Orumilá. Passado algum tempo, a arqui-divindade quis possuir um escravo. Dirigiu-se ao mercado de escravos em Emure e comprou um, de nome Atowoda, aquele que alguém traz sobre a própria cabeça. Prestativo e eficiente, trazia muita satisfação ao seu senhor. No terceiro dia de convivência Atowoda pediu a Orixá que lhe cedesse uma porção de terra para cultivo próprio. Teve seu pedido atendido e tornou-se proprietário de terras na encosta da montanha que ficava próxima à casa de Orixá. Em apenas dois dias de trabalho limpou o mato, construiu uma cabana e cultivou uma fazenda, deixando seu amo muito bem impressionado. Mas o coração de Atowoda não era bondoso e nele germinou o desejo de destruir o amo. Procurando a melhor maneira para realizar seu intento, maquinou um plano: havia na fazenda grandes pedras e uma delas poderia, em momento oportuno, ser deslocada do alto da montanha, de modo a rolar morro abaixo e cair sobre Orixá. Escolhida a pedra adequada, preparou-a para que pudesse ser facilmente deslocada. Uma ou duas manhãs depois, Orixá encaminhou-se para a fazenda. Atowoda o espreitava sem esforço, pois seu senhor vestia roupas brancas, destacando-se, nítido, na paisagem verde. No momento oportuno, Atowoda movimentou a pedra e a arqui-divindade, entre surpreso e aterrorizado, não teve como escapar e sucumbiu sob o peso da pedra, partindo-se em muitos pedaços, que se espalharam por toda parte.  Orumilá tomou conhecimento do ocorrido e, servindo-se de certas práticas ritualísticas recolheu os pedaços de Orixá numa cabaça: Ohun-ti-a-ri-sa - o que foi encontrado e reagrupado. Alguns pedaços foram levados a Iranje, lugar de origem da arqui-divindade e outros foram distribuídos por todas as partes do mundo.

A palavra Orixá, a partir daí, seria contração de Ohun-ti-a-ri-sa e esse teria sido o início do culto em todo o mundo. Este mito sugere que originalmente Orixá era uma unidade da qual decorreram todas as divindades. Sugere também que o Uno manifesta-se no múltiplo e que aquilo que é dividido será um dia reagrupado.

Por fim, para elucidar de vez a questão, outra interpretação apresenta a palavra Orixá como corruptela da palavra “orise”, contração de “Ibiti-ori-ti-se”, ou seja, origem (ou fonte) dos ori, designação do Ser Supremo. Esta interpretação enfatiza a íntima participação das divindades na obra de Deus na terra.

Seja como for, qualquer que seja a interpretação escolhida, faça preces ao seu Orixá, cultive-o em você. Creio em particular que Deus não poderia ser outra coisa que não algo tão grande que precisou dividir-se para comportar-se no mundo.

Axé!