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"Ser de Candomblé não se limita ao fato de ter uma religião, é, sobretudo, um modo de vida".
Pai Lucas de Odé

sábado, 26 de março de 2016

Páscoa até existe em outras religiões, mas com significados bem diversos

Liberdade religiosa têm promovido visibilidade de outros credos, que fogem da ritualística cristã
Páscoa só significa renovação no cristianismo / Divulgação

Guilherme Cavalcante/Midiamax

Em um país de tradição religiosa cristã, sobretudo católica, o feriado da Páscoa - ou Semana Santa, como prega o catolicismo - afeta a todos sem distinção, seja na fé ou no bolso. Vai muito além dos costumes ritualísticos que impregnam a rotina do brasileiro nos dias que antecedem a celebração, até a economia é afetada pela data. A procura por ovos de chocolate, peixes e frutos do mar, pão de coco e outros alimentos afins foi naturalizada, ainda mais quando a sexta-feira de Páscoa é, inclusive, feriado nacional, independente da religião professada.

Entretanto, por mais que o período faça mais sentido no contexto do cristianismo, outras religiões também celebram a data, mesmo que com diferentes significados. E embora seja certo que as rotinas pascais cristãs influenciem muito as celebrações de outros credos, cada religião tem seguido para um fortalecimento dos próprios rituais. Afinal, para além da questão religiosa, há certamente elementos cultural e identitários na composição de cada credo.

O 'Keará de pessach' traz elementos simbólicos do judaísmo / Divulgação
O 'Keará de pessach' traz elementos simbólicos do judaísmo / DivulgaçãoA liberdade religiosa, a propósito, promove visibilidade da cultura de outros credos, a exemplo do judaísmo, para a qual a páscoa tem significado bastante diferente. Conhecida como pessach, a 'páscoa judaica' tem significado diverso das religiões cristãs e marca a 'festa da libertação', ou seja, a comemoração de quando hebreus foram libertados do Egito por Moisés, após atravessaram o deserto e encontrarem a terra prometida, atual Israel.

"O que a gente faz no pessach é justamente isso, celebrar essa vitória dos judeus guiados por Deus, através de Moisés. Durante sete dias, a gente fica sem comer nenhum alimento fermentado. O que a gente come é o matzá, um pão tradicional sem fermento. Nessa época, nós fazemos muitas rezas e reflexões. Tudo tem uma simbologia, representa algo do passado do nosso povo", conta a gastróloga Daniela Feher.

Segundo ela, essas simbologias são condensadas principalmente na 'keará de pessach', um prato onde se põe cada componente simbólico do pessach, durante a seder (o jantar cerimonia no qual culmina o pessach). "Cada elemento tem um significado e nos ajuda e remeter à cultura judaica e à história do nosso povo, os sacrifícios de Deus para conosco", afirma.

Rumos diferentes


Religiões de matriz africana distanciam-se dos rituais católicos de outrora / Divulgação
Historicamente, para resistirem, estes credos precisaram recorrer ao sincretismo com o catolicismo, um fenômeno de ressignificação das entidades para um contexto cristão, que marcou fortemente os rituais do candomblé. "As casas tradicionais têm uma ligação sincrética muito forte. A maioria até fecha e suspende todas as atividades durante a quaresma. Assim, a sexta-feira Santa, pra nós, é uma data de resignação perante Oxalá. Vestimos branco, resguardamo-nos em casa. Não comemos carnes e nem frango, somente peixe. Não saímos, não festejamos. A páscoa, por outro lado, marca essa reabertura, o que não deixa de ser um renascimento. Nós nos recolhemos na quinta-feira nos terreiros.

Dormimos lá, acordamos na sexta em jejum pela manhã para fazer ritos de proteção, acender velas e realizar nossas preces", relata o Babalorixá Lucas de Odé, 28, dirigente do Axé Dambá Odé, terreiro de candomblé em São Bernardo do Campo - SP.

Um fenômeno diferente tem sido observado na umbanda, uma religião brasileira, porém, oriunda do catolicismo, espiritismo, cultos ameríndios e do africanismo. Por muitas décadas, a aproximação com a páscoa católica no mesmo período, mas a situação mudou. "Antigamente as pessoas não tinha liberdade de ser umbandistas, devido ao domínio católico. Por isso as pessoas antigas eram umbandistas, mas carregavam muitas tradições daquela religião. Como as coisas evoluíram e houve mais liberdade religiosa nas últimas décadas, a umbanda fortaleceu-se e, atualmente, não considera mais o calendário católico", explica Elson Borges dos Santos, diretor espiritual da Tenda de Umbanda Pai Joaquim de Angola.

Segundo ele, a maioria dos umbandistas já não seguem os rituais antigos, que muitas vezes até copiavam a igreja católica, como abstinência na sexta-feira Santa e rituais de lava-pés.. "O que a gente se vale desse período é que devido ao feriado, a maioria dos terreiros acaba não trabalhando, mas por questões de médiuns que viajam, a corrente fica pequena... Agora, a questão de renovação na páscoa, que a igreja católica prega neste período, a gente prega o tempo todo. Todos os dias, para nós, têm o sentimento de páscoa.

Por fim, há religiões como o islamismo, que já nem sequer veem na páscoa algum significado especial, como explica Omar Ibrahim, coordenador do blog 'A Nova Cruzada', sobre cultura e religião muçulmana. "Para nós, muçulmanos, esta semana não traz qualquer significado espiritual especial, pois não cremos na morte de Cristo e por consequência, não cremos em Sua ressurreição, uma vez que só ressuscita, ou volta a vida aquele que morreu", conclui.

*Publicado originalmente no site Midiamax.com.brhttp://admin.midiamax.com.br/midiamais/pascoa-ate-existe-outras-religioes-significados-bem-diversos-294645

segunda-feira, 14 de março de 2016

O dinheiro no Candomblé: Enquanto uns vendem ilusões outros negociam a fé

Por Pai Lucas de Odé*

A história de diferentes pessoas ao chegarem no Axé Dambá Odé me levaram a escrever este texto. Quero falar sobre o dinheiro e as relações entorno dele no meio religioso, mas especificamente no Candomblé.

O “vil metal” não é chamado assim por acaso. Quando o homem descobriu o metal, logo passou a utilizá-lo para fabricar seus utensílios e armas anteriormente feitos em pedra. Mitologicamente, essa é uma das atribuições que fez de Ogun – o orixá da forja – um dos mais revolucionários entre os Orixás.

Surgiram, no século VII a.C., as primeiras moedas com características semelhantes às que conhecemos hoje. Pequenas peças de metal com peso e valor definidos e com a impressão do cunho oficial, atestado de que quem as emitiu e garante o seu valor.

O mundo antes do dinheiro funcionava por meio da cooperação entre as pessoas. O chamado escambo.  Simples trocas de mercadoria por mercadoria, sem equivalência de valor, de acordo com as necessidades fundamentais dos membros de uma comunidade. É claro que o mundo não podia continuar assim. Algumas mercadorias tinham mais utilidade que outras, logo eram mais procuradas e sobressaíram em valor, como pressupõe a lei da oferta e da procura.

O sal foi uma das moedas-mercadoria mais significativas para as civilizações, tanto que referimo-nos até hoje aos nossos salários. Era difícil de conseguir e muito utilizado na conservação de alimentos. No Brasil, entre outras mercadorias, circularam o cauri (búzios) – trazido pelo escravo africano –, o pau-brasil, o açúcar, o cacau, o tabaco e o pano, trocado no Maranhão, no século XVII.

E pra que toda esta introdução? Simples: pra comprovar que historicamente o dinheiro afastou as pessoas umas das outras, as fez querer levar vantagem umas sobre as outras e, por fim, porém não menos importante, como diz meu pai: que “o dinheiro afasta as pessoas de Deus”.

Se trouxermos esse aparato histórico para o seio dos nossos terreiros de Candomblé, uma série de pensamentos me vêm à mente. A fé pode ser suprida pelo dinheiro? A quantidade suprime a qualidade? O luxo representa o melhor nesse processo de religação que buscamos? Pra todas essas perguntas, uma única resposta: Não!

O Candomblé é uma religião baseada na obtenção e transmutação do Axé, força vital sagrada, sem forma, sem raciocínio, que buscamos por meio de ritos e conservamos por meio de padrões comportamentais. Nesse contexto, o dinheiro pode arcar com a maior das oferendas, mas não pode substituir o processo de preparo delas todas e o Axé, creiam, não está no fim, mas no meio deste produto. Sendo assim, pagar outros para fazerem por você ou querer compensar sua falta com recursos financeiros não te traz Axé. Não adianta se iludir. Deus gosta de zelo, de culto... é a devoção que nos liga a Ele. É o suor, a noite de sono perdida, o desprendimento da energia do corpo em forma de trabalho pelo sagrado.

Ao meu ver, a maior das lições precisa ser dada aos próprios sacerdotes do Candomblé. Não foi só o branco de classe média que estragou o idealismo religioso do povo mais simples. A corrupção vem do maior para o menor e, neste cenário, em se tratando sobretudo de uma religião hierárquica, quem mais deveria ter critérios se corrompeu. Concessões, facilidades, regalias, meias verdades, tudo visando apenas o dinheiro. “Ganha-se dos errados para bancar o certo”, dizem alguns. Ledo engano. Se assim um Babalorixá ou Iyalorixá o fez, passou ele ou ela a ser o errado.

É fato que num terreiro de Candomblé existem despesas e essas não são pequenas. Precisamos como todo mundo precisa do dinheiro, uma vez que a lógica do capital não nos permite retroagir. Contudo, vender ilusões, trocar valores morais por valores em reais é o pior dos pecados.

Como proceder? A verdade sempre é o melhor caminho. No Dambá Odé, a minha concepção de religioso me obriga a ser o mesmo pai para os pobres e para os ricos. A bênção não pode ser comprada. Ela tem que ser conquistada.

Acreditar está além do que se pode ver. Quantas histórias já ouvi... quantas vezes consegui muito com pouco, dividi e divido o que ganho na minha vida particular com o que creio ser sagrado. No momento em que abro as portas da minha casa para receber pessoas no que chamo de templo, não posso permitir que alguém saia sem uma ajuda. Creiam, poucas vezes vi conseguirem muito com muito. Um prato vazio pode ser a mais especial das oferendas para quem só tem a sí mesmo para ofertar.

*Pai Lucas de Odé é Babalorixá do Axé Dambá Odé, localizado em São Bernardo do Campo - SP.

A fé e os caminhos para Deus

Todos os caminhos levam a Deus, dizem. Então o que faria do Candomblé diferente nessa saga? Será que sabemos conversar com Ele?

O culto a Deus – chamado pelos Iorubas de Olodumarê - está nas questões mais simples e ao mesmo tempo cruciais do mundo, diretamente ligado aos elementos responsáveis pela vida humana. Cada um desses elementos é domínio de um Orixá, que, personificados seriam guardiões/gestores disso tudo, ou ainda a memória e o saber daqueles que nos precederam na relação com o considerado divino. É assim com o vento, a água doce, a água salgada, a terra, o caminho, a floresta, entre outros.

Mediante essa compreensão, cada ser humano possui uma ligação com pelo menos uma dessas várias parcelas da natureza, que reunidas correspondem a Deus. Cultuamos e celebramos então a vida, o que contraria frontalmente a chamada teologia da prosperidade.

Deus não nos ajudará a pagar contas. Deus não sabe o que é uma fatura. Deus não nos ajudará a financiar um carro zero, Ele não sabe o que é um carro, nem tampouco uma prestação. E ainda que soubesse, será que isso é mesmo algo nobre, que mereça ser objeto da nossa ligação com Ele?

Deus, em suas diferentes parcelas, pode compreender uma súplica pela chuva, para fertilizar a terra, para fazer brotar o alimento que sustentará o ser humano. Deus pode atender uma prece pela perfeita formação de uma criança no ventre da mãe, uma vez que a vida também é sua criação. Deus pode interceder pelo doente, pode dar discernimento ao aflito, pode conceder a bênção de uma colheita farta, de uma pesca frutífera, de uma caça gorda.

Acontece que a vida humana tornou-se condicionada a supérfluos modernos que Deus desconhece. É fato que é impossível retroagir, mas ainda podemos preservar valores verdadeiros e rogar a Ele numa linguagem que Ele possa compreender. Tenho a impressão que Deus está carente de causas nobres.

Alguém disse: “Quem não sabe rezar xinga Deus”

Pai Lucas de Odé
Axé Dambá Odé – São Bernardo do Campo – SP