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Na virada de 2015, a Comlurb recolheu 368 toneladas de lixo das areias de Copacabana. Havia muitas garrafas de bebidas, mas também grande quantidade de flores, velas e vidros de perfume, típicos presentes dos devotos. Em Salvador, no dia seguinte ao 2 de fevereiro passado, quando a capital baiana festejou Iemanjá, a empresa local de limpeza urbana retirou uma tonelada de resíduos das praias do Rio Vermelho, epicentro das comemorações.
A transformação do ritual religioso em tradição cultural, não é de hoje, preocupa ambientalistas. Há dez anos, o grupo Nzinga de Capoeira Angola promove a campanha “Iemanjá protege quem protege o mar”, em Salvador. Os ativistas pedem que as oferendas sejam biodegradáveis ou de materiais orgânicos. À frente do terreiro Ilê Axé Opô Afonjá, Mãe Stella de Oxóssi prega, faz tempo, contra homenagens que agridam a natureza. “A gente não leva presente para melar a casa da pessoa”, declarou às vésperas da festa deste ano.
Em 2016, a ialorixá vai dobrar a aposta. Na semana do Natal, em artigo no jornal baiano “A Tarde”, Mãe Stella convocou filhos de santo a reverenciarem Iemanjá com canto, dança e preces. No texto “Presença, sim. Presente, não”, uma das mais importantes sacerdotisas dos cultos afros do Brasil rejeita a entrega de barcos, perfumes, espelhos, bijuterias e até mesmo flores no mar. “Quem for consciente e corajoso entenderá que os ritos podem e devem ser adaptados às transformações do planeta e da sociedade. Os ritos se fundamentam nos mitos e nestes estão guardados ensinamentos valorosos. O rito pode ser modificado, a essência dos mitos, jamais”, escreveu.
Em Salvador e Porto Alegre, o sincretismo religioso da umbanda reservou a Iemanjá o 2 de fevereiro, dia dedicado à Nossa Senhora dos Navegantes, santa católica que protege os pescadores. No Rio, a data era, na origem, o 31 de dezembro. Mas o gigantismo do réveillon levou devotos a anteciparem homenagens. Na terça-feira, 29, centenas de pessoas participaram de cortejo do Mercadão de Madureira até Copacabana. Para reverenciar a Rainha do Mar, cruzaram 30 quilômetros, passaram por 15 bairros cariocas.
O babalaô Ivanir dos Santos, ativista contra a intolerância religiosa, recomenda que presentes inorgânicos não sejam deixados na natureza: “O que Mãe Stella está propondo não é novidade no candomblé. Na Nigéria, a forma milenar de homenagear os orixás não polui. Basta uma cabaça com oferendas e milhares de pessoas cantando e dançando. A questão é como mudar a tradição sem ferir a fé”, diz. Outro ponto é conscientizar os leigos.
Em 2006, com apoio da Fundação Palmares, Aderbal Ashogun – sob a consultoria de Mãe Beata de Iemanjá, do terreiro Ile Omiojuaro, há 30 anos em Nova Iguaçu (RJ) – publicou a cartilha “Educação ambiental para religiões afro-brasileiras”. O objetivo era resgatar o saber tradicional das religiões de matriz africana. “Os mais velhos não encontravam tantos resíduos de vidro, plástico, papelão compondo as oferendas. O dito progresso do mundo capitalista deturpou nossa maneira de tratar o meio ambiente. O povo de santo acabou incorporando valores que nos afastam de nossas tradições e justificam mais preconceito contra as religiões afro-brasileiras”, diz o texto.
No rol de práticas sustentáveis sugeridas na cartilha, está o uso de recipientes biodegradáveis (folhas de bananeira e cuias, no lugar de louças, por exemplo). Há recomendação expressa para que o devoto não deixe para trás sacos plásticos e embalagens. “No mar, derrame líquidos de garrafas e frascos de perfumes; retorne com objetos como espelho, pente, sabonete, bijuterias. Cantar, tocar, dançar são opções de oferendas que não deixam lixo”, destaca outro trecho.
O historiador Luiz Antonio Simas confirma que a questão ambiental é crescentemente discutida nas comunidades de terreiro. “Vejo mudanças, sim. O próprio processo de urbanização gera redefinições na estruturação do culto. Percebo um movimento de se combater a hipertrofia ritual, reduzindo o número de coisas utilizadas em oferendas. Em vez de oferecer frascos de perfumes, por exemplo, despeja-se um pouquinho do líquido no mar e descarta-se corretamente o vidro. Estou com Mãe Stella”, sentencia. É a prova de que fé e sustentabilidade podem, sim, andar juntas.
Conteúdo reproduzido integralmente do portal do Projeto Colabora, escrito por Flávia Oliveira
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