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"Ser de Candomblé não se limita ao fato de ter uma religião, é, sobretudo, um modo de vida".
Pai Lucas de Odé

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Pais podem iniciar seus filhos biológicos no Candomblé?

Pai Lucas de Odé
Pai Lucas é Babalorixá do Axé Dambá Odé
Há alguns dias um grupo seleto de Babalorixás e Iyalorixás do qual faço parte propôs um debate: Pais
biológicos podem iniciar seus filhos espiritualmente? Por que?

A primeira e mais comum resposta sempre é não, mas quando aprofundamos o debate, algumas ponderações tornam-se inevitáveis. Os defensores da proibição justificam: "Não se pode dar a vida a um filho duas vezes". Outras explicações, até mais plausíveis, dão conta de que nossos filhos representam a continuidade de nós mesmos, logo, não poderíamos iniciar a nós mesmos, um pensamento plausível, mas absolutamente filosófico.

Muito embora não haja uma bíblia norteadora dos costumes e tradições religiosas do Candomblé, os padrões que norteiam nossa cultura religiosa provêm das chamadas casas matriciais, aquelas mais antigas, de onde o Candomblé se espalhou para o Brasil inteiro. O problema é que, para responder esse questionamento, se olharmos para as casas tradicionais, temos precedentes controversos sobre o assunto.

Minha proposta aqui não é rotular, nem tampouco desqualificar qualquer das linhas de pensamento, mas sim fomentar a reflexão de forma mais franca.

O Candomblé é uma religião brasileira com uma matriz africana. Retrocedendo a essa origem, chegaremos a vilarejos, tribos, povoados que tinham uma organização social muito simples. Lá havia quem plantasse, quem caçasse, quem defendesse o povo e também a figura do líder espiritual ou sacerdote. Cada tribo tinha o seu e aquela figura era encarregada de cuidar de todos, sem exceção. Essa organização por sí só refuta a teoria difundida no Brasil de que cônjuges não podem estar irmanados em uma mesma casa de Axé, mas nossa proposta aqui é a iniciação de filhos biológicos, então vamos adiante.

Aquele que seja talvez o Axé mais famoso do Brasil, o Gantois, é uma casa de sucessão consanguínea e matriarcal. Isso quer dizer que lá, o título de Iyalorixá é herdado de mãe para filha. Nunca se teve notícia de que alguma daquelas que se tornaram Iyalorixás do Gantois saíram de lá para serem iniciadas em outro lugar, nem de que outro sacerdote ou sacerdotisa tenha ido até aquela casa para iniciá-las.

Outra casa igualmente tradicional, o Axé Oxumarê, já traz um histórico diferente. O exemplo mais famoso e atual é a iniciação do próprio Babalorixá Pecê de Oxumarê, cujo barco ainda teve sua mãe biológica Nilzete de Iyemanjá, iniciados pelo saudoso Babalorixá Nezinho da Muritiba, juntamente com mãe Simplícia de Ogun, que por sua vez era mãe biológica de dona Nilzete e avó de Pecê.

A Muritiba, casa de finado pai Nezinho, também muito tradicional, já levava em consideração os moldes mais essenciais das comunidades africanas. Pai Nezinho era o responsável direto pelo cuidado espiritual de vários de seus descendentes consanguíneos.

Então de onde veio essa ideia? No grupo de sacerdotes, uma das Iyalorixás presentes narrou o episódio de sua iniciação. Filha consanguínea de um conceituado Babalorixá, fora iniciada por pessoas da própria casa de seu pai, sob a supervisão do mesmo. O mesmo caso ocorreu com diversos outros filhos e filhas de sacerdotes, assunto pouco comentado, ou até abafado nas rodas de conversa sobre Candomblé, como se fosse algo errado, apenas por não ser "convencional".

Ora, se meu filho biológico é candidato em potencial a sucessão de minha casa, por qual motivo ele se iniciaria em outro Axé? Deveria eu mandá-lo para outro lugar? Dividir minha própria unidade familiar? Se o fizesse, a quem ele seguiria? Que ideais propagaria, o de seu iniciador ou o de seu patriarca? E outra: Em minha casa, o título de Babalorixá compete apenas a mim, é jurisdicional, intransferível enquanto eu estiver vivo. Como poderia outro Babalorixá exercer tal prerrogativa dentro da minha jurisdição? Babás e Iyás fora de suas casas são apenas Egbomi. Todo e qualquer posto é restrito à comunidade onde fora outorgado.

Mediante essas ponderações caminhamos para a compreensão da polêmica: Existe proibição religiosa - fundamento, explicação ritualística - para pais iniciarem seus filhos biológicos? NÃO. O que acontece é que de alguma forma essa "convenção" se instaurou no Candomblé (talvez porque qualquer postura inadequada que um filho porventura ouse cometer contra seu pai não fosse compreendida pelo seu Orixá), então temos uma outra questão: Pais que são sacerdotes competentes podem e devem manter a iniciação de seus filhos biológicos dentro de sua própria casa, se não pelas suas mãos, por outras a seu serviço. Meu posicionamento de Babalorixá se traduz nas palavras de meu próprio Babalorixá: "Quando determino a um egbomi da minha casa que exerça determinado feito, naquele ato ele me representa". E, de acordo com este entendimento, meu filho seguirá os meus passos, terá a mim como mentor e líder espiritual, aprenderá os meus ensinamentos e perpetuará a história de meu axé e de sua família.

"O futuro do Candomblé depende da clareza dos nossos pensamentos, compreensão e apego às nossas tradições, propagação das nossas verdades e verdade nas nossas ações"


Pai Lucas de Odé


Axé!



5 comentários:

  1. Na Nigéria, em suas aldeias há um único Elegun, mais pode haver vários sacerdotes, então sim outra sacerdote que não seja cosanguinio inicia o futuro iniciado, nas casas tradicionais da Bahia exemplo Oxumare ao qual pertenço quanto a iniciação e feito por outra sacerdote ou Egbomy da casa com supervisão do baba ou Yia é a justificativa para isso e bem mais aprofundada do que a sua explicação superficial, uma delas e não é filosófica e um dos principais fundamento do nosso culto de que morremos e nascemos dentro da própria família, então seu filho com certeza foi seu ancestral e traz no seu nascimento a mesma carga karmica e o Odu da família, então tanto uma pai não inicia um filho como um filho não inicia o pai é quem não respeita este fundamento corre grandes risco um é o de a pessoa iniciada não ter nenhuma prosperidade e potencializar os karmas pessoais!

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    1. Obrigado por sua colaboração. O que o texto sugere é que os filhos biológicos de sacerdotes sejam iniciados dentro do próprio axé, não necessariamente por seus pais, mas sob a supervisão destes

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  2. Fui escolhida pelo Nkisi de minha mãe carnal (Matamba) para ser sua Makota... Sou muito feliz por isso, minha vida prosperou imensamente desde então e não acredito que isso seja uma norma rígida que não possa ter suas exceções... O que é para o bem, o que é da vontade do Nkissi com a permissão de Zambe, deve ser feito e não questionado... Konzondiô à todos.

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  3. Gostei muito das narrativas explicativas que aqui encontrei.
    Nao tenho mais dúvidas. Darei sim continuidade aos cuidados para com os a mim incumbidos. Grata a todos. Muito asé a todos

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Obrigado pela sua participação! Axé!!!