Reflexão do dia:

Reflexão da semana

"Ser de Candomblé não se limita ao fato de ter uma religião, é, sobretudo, um modo de vida".
Pai Lucas de Odé

quinta-feira, 7 de abril de 2011

O Candomblé e o poder feminino

Este texto é parte integrante do artigo "O candomblé e o poder feminino", de Teresinha Bernardo - Publicado na revista "Estudos da religião" em 2005.

Na África é o homem quem detém o poder religioso. Para explicar essa troca de poder religioso entre os sexos torna-se importante reconstruir o cotidiano da mulher negra. Ainda na África, Pierre Verger, ao remontar à importância da feira, especialmente para os iorubás, mostrava a presença das mulheres como grandes negociantes, sendo que no mercado, comparadas aos homens, elas são maioria. A atividade de troca que ocorre nas feiras parece ser de importância inconteste para as mulheres iorubás, pois elas se submetem à separação de suas famílias: quando jovens, deixam seus lares para ir comerciar em mercados distantes; quando idosas, mandam suas filhas para as feiras importantes e permanecem próximo a suas casas com seus tabuleiros, ou, então, abrem pequenas vendas. Evidencia-se que essas trocas realizadas nas feiras tanto podem ser para a subsistência como para alguma acumulação. Neste último caso, é importante sublinhar, a mulher não está trabalhando para o seu cônjuge. Ela compra a colheita do marido, a revende na feira e fica com o lucro. Nessa perspectiva, pode-se avaliar a autonomia da mulher iorubá: deixa a própria família, se embrenha em caminhos distantes para chegar às feiras; compra a produção de seu próprio marido, revende e permanece com o lucro; é, enfim, uma ótima comerciante. Mas a sua importância parece ser mais abrangente à medida que se visualiza a feira não somente como a complementaridade econômica, ela é o locus privilegiado de outras trocas além de bens materiais. Nas feiras trocam-se também bens simbólicos: notícias, modas, receitas, músicas, danças. Estreitam-se relações sociais. Ali são realizadas alianças importantes; ali também ocorrem os namoros, acertam-se casamentos.

Percebe-se, assim, que o papel da mulher iorubá vai além do desempenhado nas atividades econômicas. Ela é mediadora não só das trocas de bens econômicos, como também das de bens simbólicos. O lugar social ocupado pela mulher iorubá, sem sombra de dúvidas, possibilita-lhe o exercício de um poder fundamental para a vida africana. 

Nesse momento, movo o meu foco de análise para a família. É Verger quem destaca o papel da mulher, ao informar que

(...) Na organização da família iorubá, que é polígama, contrariamente ao
conceito que pessoas mal informadas fazem, as mulheres usufruem uma maior
liberdade que a que se dá nas uniões monogâmicas. Na grande casa familiar do
esposo, elas são aceitas como progenitoras dos filhos, destinadas a perpetuar a
linhagem familiar do marido. Mas elas nunca aí são totalmente integradas,
deixando-lhes esse fato uma certa independência. Após o casamento, elas
continuam a praticar o culto de suas famílias de origem, embora seus filhos
sejam consagrados ao deus do cônjuge (Verger, 1986: 275)1.

Apesar de os dados contidos na afirmação de Verger atestarem a patrilinearidade em relação ao poder religioso (os filhos são consagrados ao deus do cônjuge), a mulher, ao praticar o culto de sua família de origem, está vinculada ao deus paterno; portanto, guarda uma certa autonomia em relação a seu marido. Se, para algumas interpretações, o casamento de um homem com várias mulheres indica a submissão feminina, pode-se interpretar esse fato preliminarmente como Verger, ao mostrar que a dominação masculina dilui-se entre as várias mulheres. Essa versão, aliada ao dado das "mulheres no mercado", das "ótimas comerciantes" que conseguem amealhar fortunas consideráveis - o que as torna, muitas vezes, mais ricas que seus próprios maridos (mesmo porque é da competência masculina a subsistência das mulheres e filhos) - faz com que a versão vergeriana sobre a poliginia e a autonomia feminina ganhe muito mais sentido.

Ainda na África, outras situações vividas pela mulher merecem destaque: "(...) Na organização dos reinos fons e nagô-iorubá, as mulheres desempenharam um papel ativo, eram elas quem administravam o palácio real, assumindo os postos de comando mais importantes, além de fiscalizarem o funcionamento do Estado" (Silveira, 2000: 88)2.

Destaca-se, também, que os daomeanos eram guerreiros terríveis, mas, sobretudo, que mantinham uma tropa feminina de elite que amedrontava de longe o inimigo.

No século XVIII, as feiras e mercados iorubás isolados se articulavam em uma grande rede, ao mesmo tempo em que ocorria o processo de urbanização das cidades. Data dessa mesma época a fundação de duas associações femininas importantes: as sociedades Ialodê e Gueledé.

A Ialodê era uma associação feminina cujo nome significa "senhora encarregada dos negócios públicos". Sua dirigente tivera lugar no conselho supremo dos chefes urbanos e era considerada uma alta funcionária do Estado, responsável pelas questões femininas, representando, especialmente, os interesses das comerciantes. Enquanto a Ialodê se encarregava da troca de bens materiais, a sociedade Gueledé era uma associação mais
próxima da troca de bens simbólicos. Sua visibilidade advinha dos rituais de propiciação à fecundidade, à fertilidade; aspectos importantes do poder especificamente feminino.

É interessante notar que essas duas associações femininas estão diretamente referidas às atividades desenvolvidas pelas mulheres nas feiras. Mais precisamente à mulher do mercado, a mediadora da troca, tanto de bens materiais quanto de bens simbólicos que vieram dar origem respectivamente a Ialodê e a Gueledé. Percebe-se, assim, que a mulher iorubá além de deter o saber de usar a autonomia que a própria família poligínica lhe possibilitou, tornou-se a mediadora de bens materiais e simbólicos; e foi, ainda no século
XVIII, fundadora de associações femininas importantes. Essa volta ao passado africano não tem a pretensão de filiar este estudo às correntes afrocentristas.

Esse retorno possibilita simplesmente alcançar uma profundidade histórica à medida que a África é percebida como fonte. Na realidade, o foco de minha análise centrase na diáspora. Movimento esse pensado, anteriormente, como de mão única, uma vez que o significado da escravidão que emerge, no primeiro momento, era o de uma viagem sem volta, com o massacre, com o desmonte da diversidade cultural africana que aportava no Brasil com seus agentes.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Obrigado pela sua participação! Axé!!!